19 de março de 2015

O carpinteiro de Nazaré


Muitos são os “ventos doutrinários” que balançam “o pequeno barco da humanidade”, impedindo-o de enxergar o Deus escondido no pobre carpinteiro.
Deus feito carne. Esse é Jesus, o filho do carpinteiro, a quem alguns fariseus lançam olhares de dúvida e de suspeita, como se estivessem a tratar com algum charlatão ou sujeito de índole perigosa (cf. Mt 13, 54-58). De fato, há de repetir-se inúmeras vezes, Cristo é o messias “inesperado”, aquele que entra na cidade santa, montado em um pequeno jumento, despido de qualquer pompa ou ornamento cintilante. E, no entanto, é rei. Ele não vem com o chicote, pronto a levantar guerra contra o Estado, também não vem matar a fome, tampouco instaurar uma nova ordem política. Ele vem para nos mostrar a face de Deus. Tudo o mais — a paz, o amor, a libertação — é fruto desta realidade: o Deus que, fazendo-se carne de nossa carne, sangue de nosso sangue, vem habitar no meio de nós, a fim de dar cumprimento ao “o ano da misericórdia do Senhor, um dia de vingança para o nosso Deus” (Lc 4, 19).
 Deus — que também é vingança — não consiste na banalização do mal, “não é uma graça barata” [1], por assim dizer, em que tudo encontra a sua justificação sem arrependimento. Consiste, ao contrário, no Deus que vem sofrer na pele as dores da humanidade, mormente as chagas provenientes do pecado, que arrastam o homem para o campo de concentração do demônio: o inferno. Trata-se da paixão de Cristo. A vingança de Deus é, portanto, a sua morte e ressurreição, a vitória sobre o plano diabólico, trazendo à luz a beleza da verdade e o rosto destrutivo do príncipe das trevas. Deus vinga-se com a luz. Ele desmascara a mentira do demônio com Seu próprio sangue, lavando nossos olhos e libertando-nos da cegueira espiritual, tal qual fez com o cego Bartimeu: “Vai, a tua fé te salvou” ( Mc 10, 52).
Salvos pela graça de Deus, tornamo-nos propriedade d’Ele, posto que deixamos de ser escravos do demônio para habitarmos na casa do Senhor. No batismo, somos introduzidos no Corpo de Cristo, de sorte que, a partir deste momento, devemos “viver, trabalhar e morrer para produzir frutos para o homem-Deus, glorificá-Lo em nosso corpo e fazê-Lo reinar em nossa alma” [2]. Existe uma vocação específica e, a um só tempo, universal para todos os cristãos, que culmina, de um modo ou de outro — dependendo de cada chamado — para a santificação dos homens. Diz-nos São Luís Maria Grignon de Montfort:

 “Jesus Cristo que receber alguns frutos de nossas mesquinhas pessoas: quer receber nossas boas obras, porque as boas obras lhe pertencem exclusivamente: ‘Creati in operibus bonis in Christo Iesu – Criados em Jesus Cristo para as boas ações" (Ef 2, 10).” [3]


Contudo, numa época em que a ameaça do mal parece se enraizar no coração do homem de tal maneira, que se põe em perigo até mesmo a sobrevivência da espécie, torna-se cada vez mais difícil encontrar um coração solícito à graça de Deus e às suas responsabilidades. Recorda-nos São Josemaria Escrivá, as crises mundiais que enfrentamos não são outra coisa, senão crise de santos [4]. Como nos dias em que Cristo pisou neste chão, ainda em nossa época existem os fariseus que O cobrem com olhares de suspeita e receio: “Não é o filho do carpinteiro?” Assim, diz-nos as Sagradas Escrituras, “o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8, 20), porque o coração do velho Adão se encontra ocupado pelas seduções dos ídolos: a tentação de substituir Jesus por algum conceito próprio, uma ideia original, com a qual me sinto realizado e bem-sucedido.
As causas desta nova espiritualidade sem Deus são muitas: vêm desde um egocentrismo desmedido — em que somos reduzidos a meros objetos de consumo — a um projeto político, que nos torna massa de manobra para fins ideológicos — iguais aos que varreram o planeta nos dois últimos séculos. Jesus não tem onde repousar a cabeça, pois muitos são os “ventos doutrinários” que chacoalham “o pequeno barco do pensamento de muitos cristãos”, jogando-o de um extremo ao outro [5].
Por outro lado, Jesus não deixa de estender-nos a sua mão: “Aí onde estão nossos irmãos, os homens, aí onde estão as nossas aspirações, nosso trabalho, nossos amores — aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo” [6]. E é isto que nos torna Seus discípulos: a fé no Deus que é vivo e apresenta-se a nós com vestes de um pobre e humilde carpinteiro de Nazaré.

Referências

  1. Cardeal Joseph Ratzinger, Homilia na Santa Missa “Pro Eligendo Romano Pontifice”, 18 de abril de 2005
  2. São Luís Maria Grignon de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Virgem Santíssima, n. 75
  3. Idem
  4. São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 301
  5. Cardeal Joseph Ratzinger, Homilia na Santa Missa “Pro Eligendo Romano Pontifice”, 18 de abril de 2005
  6. São Josemaria Escrivá, Homilia pronunciada no campus da Universidade de Navarra, 8 de outubro de 1967