Muitos
são os “ventos doutrinários” que balançam “o pequeno barco da
humanidade”, impedindo-o de enxergar o Deus escondido no pobre
carpinteiro.
Deus
feito carne. Esse é Jesus, o filho do carpinteiro, a quem alguns
fariseus lançam olhares de dúvida e de suspeita, como se estivessem a
tratar com algum charlatão ou sujeito de índole perigosa (cf. Mt
13, 54-58). De fato, há de repetir-se inúmeras vezes, Cristo é o
messias “inesperado”, aquele que entra na cidade santa, montado em um
pequeno jumento, despido de qualquer pompa ou ornamento cintilante. E,
no entanto, é rei. Ele não
vem com o chicote, pronto a levantar guerra contra o Estado, também não
vem matar a fome, tampouco instaurar uma nova ordem política. Ele vem
para nos mostrar a face de Deus. Tudo o mais — a paz, o amor, a
libertação — é fruto desta realidade: o Deus que, fazendo-se carne de
nossa carne, sangue de nosso sangue, vem habitar no meio de nós, a fim
de dar cumprimento ao “o ano da misericórdia do Senhor, um dia de
vingança para o nosso Deus” (Lc 4, 19).
Deus
— que também é vingança — não consiste na banalização do mal, “não é
uma graça barata” [1], por assim dizer, em que tudo encontra a sua
justificação sem arrependimento. Consiste, ao contrário, no Deus que vem
sofrer na pele as dores da humanidade, mormente as chagas provenientes
do pecado, que arrastam o homem para o campo de concentração do demônio:
o inferno. Trata-se da paixão de Cristo. A vingança de Deus é,
portanto, a sua morte e ressurreição, a vitória sobre o plano diabólico,
trazendo à luz a beleza da verdade e o rosto destrutivo do príncipe das
trevas. Deus vinga-se com a luz. Ele desmascara a mentira do demônio
com Seu próprio sangue, lavando nossos olhos e libertando-nos da
cegueira espiritual, tal qual fez com o cego Bartimeu: “Vai, a tua fé te
salvou” ( Mc 10, 52).
Salvos
pela graça de Deus, tornamo-nos propriedade d’Ele, posto que deixamos
de ser escravos do demônio para habitarmos na casa do Senhor. No
batismo, somos introduzidos no Corpo de Cristo, de sorte que, a partir
deste momento, devemos “viver, trabalhar e morrer para produzir frutos
para o homem-Deus, glorificá-Lo em nosso corpo e fazê-Lo reinar em nossa
alma” [2]. Existe uma vocação específica e, a um só tempo, universal
para todos os cristãos, que culmina, de um modo ou de outro — dependendo
de cada chamado — para a santificação dos homens. Diz-nos São Luís
Maria Grignon de Montfort:
“Jesus Cristo que receber alguns frutos de nossas mesquinhas pessoas:
quer receber nossas boas obras, porque as boas obras lhe pertencem
exclusivamente: ‘Creati in operibus bonis in Christo Iesu – Criados em Jesus Cristo para as boas ações" (Ef 2, 10).” [3]
Contudo,
numa época em que a ameaça do mal parece se enraizar no coração do
homem de tal maneira, que se põe em perigo até mesmo a sobrevivência da
espécie, torna-se cada vez mais difícil encontrar um coração solícito à
graça de Deus e às suas responsabilidades. Recorda-nos São Josemaria
Escrivá, as crises mundiais que enfrentamos não são outra coisa, senão crise de santos
[4]. Como nos dias em que Cristo pisou neste chão, ainda em nossa época
existem os fariseus que O cobrem com olhares de suspeita e receio: “Não
é o filho do carpinteiro?” Assim, diz-nos as Sagradas Escrituras, “o
Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8, 20),
porque o coração do velho Adão se encontra ocupado pelas seduções dos
ídolos: a tentação de substituir Jesus por algum conceito próprio, uma
ideia original, com a qual me sinto realizado e bem-sucedido.
As
causas desta nova espiritualidade sem Deus são muitas: vêm desde um
egocentrismo desmedido — em que somos reduzidos a meros objetos de
consumo — a um projeto político, que nos torna massa de manobra para
fins ideológicos — iguais aos que varreram o planeta nos dois últimos
séculos. Jesus não tem onde repousar a cabeça, pois muitos são os
“ventos doutrinários” que chacoalham “o pequeno barco do pensamento de
muitos cristãos”, jogando-o de um extremo ao outro [5].
Por
outro lado, Jesus não deixa de estender-nos a sua mão: “Aí onde estão
nossos irmãos, os homens, aí onde estão as nossas aspirações, nosso
trabalho, nossos amores — aí está o lugar do nosso encontro cotidiano
com Cristo” [6]. E é isto que nos torna Seus discípulos: a fé no Deus
que é vivo e apresenta-se a nós com vestes de um pobre e humilde
carpinteiro de Nazaré.
Referências
- Cardeal Joseph Ratzinger, Homilia na Santa Missa “Pro Eligendo Romano Pontifice”, 18 de abril de 2005
- São Luís Maria Grignon de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Virgem Santíssima, n. 75
- Idem
- São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 301
- Cardeal Joseph Ratzinger, Homilia na Santa Missa “Pro Eligendo Romano Pontifice”, 18 de abril de 2005
- São Josemaria Escrivá, Homilia pronunciada no campus da Universidade de Navarra, 8 de outubro de 1967