26 de junho de 2015

Prova da Imortalidade da alma em Sócrates

FÉDON – Se não me engano, depois que concordamos com ele e que todos se manifestaram de acordo com a existência real de uma ideia a que corresponde cada coisa, sobre a participação no que se refere a estas ideias de tudo o que, não sendo elas mesmas, delas recebe a denominação, depois disso, ele perguntou:

- Se tal é, pois, a tua doutrina, será que, afirmando que Símias é maior do que Sócrates e menor do que Fédon, não afirmarás que há em Símias as duas qualidades, a grandeza e a pequenez?

- Sim.

- Mas, na realidade, acrescentou, quando dizes que Símias é maior do que Sócrates, concordas em que a verdade verdadeira não é precisamente a que decorre da expressão verbal, não é? E que, de fato, Símias é maior, não por sua própria natureza, isto é, como Símias, mas sim por motivo da grandeza que possui, não é assim? E, de outro lado, que ele é maior do que Sócrates não porque Sócrates seja Sócrates, mas somente porque Sócrates tem a pequenez relativamente à grandeza de Símias?

- É verdade.

- E também porque, se Símias é menor que Fédon, isso se verifica não porque Fédon seja Fédon, mas porque Fédon tem a grandeza em relação à pequenez de Símias?

- É isso mesmo.

- Desse modo, por conseguinte, a denominação que pertence a Símias é tanto “ser grande” como “ser pequeno”, pois ele está entre os dois e à grandeza de um, para que esta o supere, ele submete sua pequenez, enquanto ao outro o que ele apresenta é a sua grandeza, que ultrapassa a pequenez deste...

E, com um sorriso, acrescentou:

- Tenho o ar de falar como um redator de contratos. Mas, em todo o caso, as coisas são aproximadamente assim.

Cebes assentiu.

- E falo deste modo, continuou, porque desejo que partilhes da minha própria opinião. Ora, parece-me que não somente a grandeza por si mesma não deseja jamais ser grande e pequena ao mesmo tempo como, também, a grandeza que está em nós não quer jamais acolher a pequenez e muito menos ser superada, e, então, das duas uma: ou foge e cede o lugar quando o seu contrário, a pequenez, se aproxima dela, ou então, pelo próprio fato desta aproximação, ela cessa de existir. Quanto a permanecer firme no seu lugar e receber em si a pequenez, isso ela não quer absolutamente. Uma comparação: eu, uma vez que recebi a pequenez, continuando a ser aquele que precisamente sou, eu, este mesmo Sócrates, sou pequeno; ela, ao contrário, a grandeza, sendo grande, não pode tolerar ser pequena. E do mesmo modo também a pequenez que está em nós recusa-se sempre tornar-se grande ou ser grande; e assim também qualquer outro contrário, enquanto for o que precisamente é, recusa-se tornar-se ou ser ao mesmo tempo o seu próprio contrário. Mas, se lhe acontece o que acabo de dizer, ou ele se afasta, ou cessa de existir.

- Isso me parece de uma absoluta evidência, disse Cebes.

Um dos presentes (não me recordo quem) tomou então a palavra:

- Pelos deuses! Mas, de acordo com o que dizíeis antes, não se tinha chegado a um entendimento sobre o inverso precisamente do que se assevera agora? Não se afirmou que é do menor que nasce o maior, e do maior o menor? Que aquilo que realmente constitui a geração para os contrários é provir dos contrários? Ora, presentemente, o que se diz, parece-me, é que isso jamais se pode produzir!

Sócrates voltou a cabeça para o lado de onde vinha a voz.

- És um bravo, disse ele, pois nos lembraste isso! Não refletes, todavia, sobre a diferença existente entre o que se diz presentemente e o que se dizia antes. Efetivamente, o que se dizia é que da coisa contrária nasce coisa que lhe é contrária; mas agora se diz que é o contrário em si que não poderia tornar-se o seu próprio contrário, nem o que está em nós, nem o que está na natureza. Sim, meu caro, naquele momento tratava-se das coisas que têm em si os contrários e às quais damos o nome destes; mas agora se trata dos próprios contrários, cuja denominação, com a sua presença nas coisas qualificadas, passa a estas; e os contrários em questão, jamais, diremos, consentiriam em receber um dos outros a geração.

E, ao mesmo tempo, olhando Cebes, disse:

- Será que, por acaso, tu também, Cebes, te deixaste perturbar pela dúvida acerca daquilo de que falou aquele homem?

- Não, disse Cebes, de nenhum modo. Não é esse o meu caso. Isso, entretanto, não significa que não haja certas pequenas coisas que me perturbam.

- Estaremos de acordo, prosseguiu Sócrates, sem restrições, em que jamais o contrário será o seu próprio contrário?

- Perfeitamente, disse Cebes.

- Prossigamos então, disse ele. Faze-me o favor de examinar se, sobre isto, estamos de acordo. Há uma coisa que chamas quente e outra frio, não é?

- Sem dúvida.

- É isso, precisamente, a que chamas neve e fogo?

- Oh! Certamente que não, por Zeus!

- Então, o calor é coisa diferente do fogo, e o frio diferente da neve?

- Sim.

- Mas, então, suponho, segundo a tua opinião, jamais uma neve autêntica, que tiver, da maneira que antes dizíamos, recebido em si o calor, continuará a ser o que precisamente ela é, sendo neve com calor; pelo contrário, à medida que o calor aumenta, ela ou lhe cederá o lugar ou deixará de existir.

- Certamente.

- E o fogo, por sua vez, quando o gelo se aproxima dele, ou se afasta ou é destruído, sem resolver jamais, depois de haver recebido em si a frialdade, ser ainda aquilo que precisamente é, sendo fogo com frio.

- É exato, disse ele.

Pode acontecer, pois, continuou Sócrates, que em certos exemplos análogos tudo se passe de tal modo que não somente a ideia em si mesma tenha direito a seu próprio nome por uma duração eterna, mas que haja ainda outra coisa que, ainda que não sendo a ideia de que se trata, possua contudo o caráter desta, e isso pela inteira duração de sua própria existência. Mas eis ainda aqui casos que esclarecem o que digo. O ímpar tem sempre direito a não se separar deste nome de ímpar que lhe damos presentemente, não é assim?

- Sem nenhuma dúvida.

- E isto se passa com esta realidade somente (pois este é o problema que eu proponho) ou também com outra que, sem ser o próprio ímpar, todavia, usa de direito sempre o seu nome, junto ao próprio nome, pois sua natureza é tal que o ímpar jamais a desacompanha? Ora, digo eu, é o caso que se passa com o três, e com outras coisas. Considera o caso do três: não és de opinião que tanto o seu próprio nome deve sempre servir para designá-lo como o do ímpar, ainda que o ímpar não seja a mesma coisa que o três? Pois bem. Entretanto, se essa é a natureza do três, ela é também a do cinco e da metade inteira da série dos números, e, ainda que não sendo a mesma coisa que o ímpar, cada um deles é sempre ímpar. O dois, de outro lado, e o quatro e a totalidade ainda da outra fileira da numeração não são a mesma coisa que é o par, e contudo cada um destes números é sempre par. Concordas com isso, ou não?

- Como não concordar? respondeu ele.

- Pois bem, continuou Sócrates, presta atenção agora no que pretendo demonstrar. Eis aqui: evidentemente, não são somente estes primeiros contrários que não se recebem uns aos outros; há também todas as coisas que, sem serem mutuamente contrárias, possuem sempre estes contrários e que, verossimilmente, não receberiam também tal qualidade, que seria o contrário da que existe neles; mas, à aproximação desta qualidade, deixam de existir ou cedem o lugar. Não diremos, em relação ao três, que ele cessará de existir, que sofrerá qualquer vicissitude, mas que não suportará, continuando a ser três, tornar-se par?

- É absolutamente certo, disse Cebes.

- É certo também, disse Sócrates, que o dois não é o contrário do três?

- Certamente que não.

- Não são, pois, somente as ideias contrárias que não suportam a aproximação uma da outra; mas há também outras coisas que não suportam a aproximação dos contrários.

- É a própria verdade, disse Cebes.

- Queres, então – continuou Sócrates – que determinemos, se formos capazes, de que espécie são estas últimas coisas?

- Oh! Certamente.

- Não seriam aquelas, Cebes, que, se qualquer outra coisa conseguem dominar, constrangem essa coisa não somente a possuir a sua própria natureza, mas também a de um contrário que tem sempre um contrário?

- Que dizes?

- O que dizíamos há apenas um instante. Vejamos: sabes bem que tudo aquilo que sofre o domínio da natureza do três não é necessariamente apenas três, mas também ímpar.

- É exato.

- Por conseguinte, dizemos nós, a uma coisa da mesma espécie do três não poderá jamais sobrevir uma natureza tal que se opusesse como contrário ao caráter daquela que produz o três.

- Não, certamente.

- Ora, a ideia que, como se sabe, o produz é sem dúvida a do ímpar?

- Sim.

- E não é contrária a esta a ideia do par?

- Sim.

- Ao três, por conseguinte, jamais sobrevirá a natureza do par?

- Não, certamente!

- Em consequência, o par não é o atributo do três.

- Não é o seu atributo.

- Ímpar é, pois, a ideia do três.

- Sim.

- Eis aí, em suma, o que eu chamava determinar de que espécie são as formas que, sem serem o contrário de tal outra, não recebem, todavia, esse contrário. Como se vê, no exemplo citado, o três, não sendo o contrário do par, não o recebe por isso, porque traz sempre consigo o contrário do par; como o dois, o contrário do ímpar; o fogo, o contrário do frio; e outras numerosas formas. Pois bem! Vejamos agora, se aceitas esta definição: não é somente o contrário que não recebe em si o contrário, mas também esta forma que leva consigo, vá para onde for, um contrário; essa forma, digo, que leva consigo um seu contrário não poderá jamais acolher em si o contrário do contrário que por ela é levado. Procura lembrar-te: não é um mal ouvir repetir a mesma coisa. O cinco não receberá nele a natureza do par; nem o dez, que é o duplo, a do ímpar. O duplo, também por si mesmo, é contrário de outra coisa; entretanto, ele jamais receberá em si a natureza do ímpar. E, assim, uma fração como o 3/2 e todas as outras deste gênero, como 1/2, que têm por denominador o 2, não recebem a ideia do inteiro; e também não recebem frações como 1/3 e todas as outras do mesmo gênero que têm por denominador o 3. Suponho que hajas acompanhado o meu raciocínio e partilhes da minha opinião.

- Acompanhei o teu raciocínio e sou inteiramente da tua opinião, disse Cebes.

- Agora, disse Sócrates, voltemos ao ponto de partida e fala-me sem empregar para responder as mesmas palavras da minha pergunta, mas tomando-me como exemplo. Eu me explico: ao lado da resposta de que eu falava, da segura resposta a que aludi primeiramente, eu percebo, à luz das nossas últimas palavras, uma outra certeza. Se me perguntasses: “Que é que, apresentando-se no corpo, fará com que ele fique quente?”, eu não te daria a segura resposta em questão, segura, mas não sábia: “É o calor que o fará”, mas sim outra mais hábil, tirada daquilo que acabamos de dizer: “É o fogo que o fará”. E, ainda, se perguntares o que é que, apresentando-se num corpo, fará com que ele fique doente, eu não direi também que é a doença, mas que será a febre. Assim também: “Quem é que apresentando-se em um número par fará com que ele fique ímpar?”; eu não responderei que é a imparidade, mas que será a unidade. E assim por diante. Vê, agora, se compreendes o que quero dizer:

- Sim, compreendo-o bem, disse Cebes.

- Então, responde: o que é que, apresentando-se em um corpo faz com que ele seja vivo?

- É a alma, disse ele.

- E será sempre assim?

- Como negá-lo?

- Assim, a qualquer objeto de que se apodere, a alma traz consigo a vida?

- É o que acontece sempre, respondeu ele.

- Ora, há um contrário da vida ou não?

- Há, respondeu ele.

- Qual?

- A morte.

- Não é verdade que a alma jamais deverá receber nela o contrário, o contrário daquilo que, por si, ela traz sempre consigo, e que a este respeito o acordo deve resultar do que se disse precedentemente?

- Perfeitamente, respondeu Cebes.

- E que se segue? Que nome dávamos há pouco àquilo que não recebe em si a natureza do par?

- Ímpar, disse ele.

- E o que não recebe em si o justo? E o que não é capaz de receber em si o culto?

- Inculto, disse; e o primeiro: injusto.

- Pois bem; e aquilo que não pode receber em si a morte, como o chamamos?

- Imortal, disse.

- A alma não recebe em si a morte, não é?

- Não.

- A alma é, então, uma coisa imortal?

- É uma coisa imortal.

(Nota: Primeira conclusão – a alma não recebe em si a morte. Alma não-viva é coisa tão contraditória como febricitante não-quente. Ela é, pois, não-mortal.)

- Prossigamos. Até aqui, tudo ficou bem provado; ou não te parece que assim seja?

- Tudo foi muito bem exposto, Sócrates.

- E que se segue, Cebes? continuou ele. Se para o ímpar era uma necessidade ser indestrutível, seria possível que o três não fosse indestrutível?

- Como não o haveria de ser?

- E, se também para o não-quente fosse uma necessidade ser indestrutível, seria que, todas as vezes que sobre a neve se aplicasse o quente, a neve não se afastaria intata, sem liquefazer-se? Pois, com certeza, a neve não poderia deixar de existir, e, de outro lado, ela não poderia suportar, ficando firme em seu lugar para receber o calor.

- É a verdade, disse Cebes.

- Do mesmo modo, penso, se fosse para o não-frio uma necessidade ser indestrutível, jamais o fogo, no caso de ser atacado por algo frio, extinguir-se-ia; ele também não o cessaria de existir, mas escapar-se-ia, pondo-se a salvo pelo afastamento.

- Isso era necessário, disse ele.

- Não é também uma necessidade, continuou Sócrates, exprimir-se deste modo a respeito do imortal? O imortal é também indestrutível? Neste caso, não será possível à alma, quando lhe sobrevenha a morte, cessar de existir. Pois a alma – é uma consequência certa do que foi dito antes – não receberá a morte, e não será alma morta; do mesmo modo como o três, nós o dissemos, não será par e muito menos o ímpar; e o fogo também não será frio, e muito menos o calor que está no fogo. “Mas que impede”, poderá alguém perguntar, “não que o ímpar se torne par com a aproximação deste, sobre o que há se chegou a acordo, mas que, morrendo este ímpar, em seu lugar se gere o par?” Em resposta a tais palavras, nós não deveríamos dizer que o ímpar não cessa de existir: eis que o não-par não é indestrutível; pois, se chegássemos a acordo, ser-nos-ia fácil responder que, ante a aproximação do par, o ímpar e o três vão-se embora e se distanciam. Para o caso do fogo e do quente, como para todos os outros casos, tal teria sido a nossa resposta, não é?

- Certamente.

- Por conseguinte, também agora, se, no que se refere ao imortal, estamos de acordo com que ele também seja indestrutível, a alma, além da não-mortalidade, teria também a indestrutibilidade. Se não estivermos de acordo, teremos que recomeçar.

- Recomeçar? De nenhum modo, pelo menos em relação a este ponto! Portanto, dificilmente se poderia admitir a existência de algo que fosse refratário à destruição, se fosse preciso admitir a destruição para o imortal, ao qual pertence a eternidade!

(Nota: ora, não-sadio e não-frio podem ser destruídos pelos seus contrários, de modo que a febre ceda e o fogo se extinga. Mas não-mortal é por definição indestrutível. A alma é assim (segunda conclusão) indestrutível.)

- Todavia, disse Sócrates, acerca da Divindade, assim como da própria ideia da vida, e de tudo o mais que possa existir de imortal, suponho que ninguém deixará de admitir que isso jamais será destruído.

- Ninguém, certamente, por Zeus! disse Cebes. Nem homens, nem, por mais fortes razões, deuses!

- E se também o imortal não pode ser destruído, a alma, que é imortal, não será também indestrutível?

- Necessariamente.

- Quando, em consequência, a morte chega ao homem, é, como parece, o que há de mortal nele que morre enquanto o que ele possui de imortal vai, salvo da destruição, cedendo o lugar à morte.

- É evidente.

- Por conseguinte, Cebes, mais do que qualquer outra coisa, a alma é não mortal e não pode ser destruída, disse Sócrates. É, pois, certo que as nossas almas habitarão o Hades.

- Sem nenhuma dúvida, disse Cebes. Quanto a mim, Sócrates, nada tenho a acrescentar depois do que disseste, nem nenhum motivo de incerteza em relação a esses raciocínios. Se houver, entretanto, alguma coisa que Símias, aqui presente (ou qualquer outro), tenha a dizer, ele não deverá permanecer silencioso. Eu me pergunto, então, se haverá outra ocasião, a não ser a que agora se oferece, em que se poderá falar ou ouvir falar de questões semelhantes!

- Pois bem, respondeu Símias. Eu também não tenho mais motivo para duvidar, pelo menos em relação ao que foi alegado. Todavia, a magnitude do problema de que tratamos e a desconfiança em que tenho esta nossa fraqueza humana obrigam-me a guardar em meu foro íntimo alguma incerteza a respeito destas teses.

- E não é isso somente, Símias, disse Sócrates. Mas a justeza de tuas palavras aplica-se também às nossas premissas: seja qual for o crédito que elas mereçam de tua parte, elas não merecem menos, por isso, um exame mais detido. Se vós todos conseguirdes apreendê-las o bastante para vossa persuasão, acreditarei, então, que passei a seguir o raciocínio, pelo menos da melhor forma possível aos homens. E, quando estiverdes sinceramente convencidos, não tereis então de levar mais adiante as vossas indagações.

- É a própria verdade, disse ele.

Há, entretanto, continuou Sócrates, pelo menos uma coisa sobre a qual vós todos deveis refletir: se a alma é verdadeiramente imortal, ela precisa do nosso cuidado, não somente durante o tempo que dura o que chamamos vida, mas durante a totalidade do tempo. E, depois do que se disse, não cuidar dela, segundo parece, seria um grave perigo. Certamente, se a morte fosse uma libertação de todas as coisas, que fortuna não seria para os maus, os quais, morrendo, ao mesmo tempo em que se sentiriam livres do corpo, sê-lo-iam também, com a alma, da sua própria maldade! Mas, na realidade, agora que a alma se revelou imortal, não há nenhuma saída para seus males, nenhuma outra salvação, senão a de se tornar a melhor possível e a mais sábia. Portanto, a alma nada mais leva consigo, ao chegar ao Hades, do que a sua formação moral e seu modo de vida, que é justamente, segundo a tradição, o que mais beneficia ou prejudica a quem morre, desde o começo de sua viagem para o além.

PLATÃO. Fédon. Trad. Miguel Ruas. São Paulo: Martins Claret, 2002. p.84-93.

25 de junho de 2015

O voo da águia


Entre as aves, a águia é a que vive mais, cerca de setenta anos. Mas para atingir essa idade, aos quarenta ela deve tomar uma difícil decisão: nascer de novo.
Pois aos quarenta suas unhas ficam compridas e flexíveis, dificultando agarrar as presas com as quais se alimenta. O bico alongado e pontiagudo se curva. As asas, envelhecidas e pesadas, dobram-se sobre o peito, impedindo-a de empreender voos ágeis e velozes.
Restam à águia duas alternativas: morrer ou passar por uma dura prova, ao longo de 150 dias. Esta prova consiste em voar para o cume de uma montanha e abrigar-se num ninho cravado na pedra. Ali, ela bate o bico contra a pedra, até quebrá-lo. Espera, então, crescer o novo bico, para poder arrancar as suas unhas.
Quando as novas unhas despontam, a águia puxa as velhas penas e, após cinco meses, crescidas as novas, ela atira-se renovada ao vôo, pronta para viver mais trinta anos.
No noviciado, aprendi que, ao longo da existência, a possibilidade de nossa sobrevida depende, muitas vezes, de seguir o exemplo da águia. Quem se entrega, abatido, ao peso do sofrimento e das dificuldades, tende a abreviar seus dias. Deixa de viver como quem voa e passa a sobreviver como um réptil que rasteja.
Reaprender a voar é ousar recolher-se para começar de novo. Eis a sabedoria de todas as religiões tradicionais ao exigir de seus noviços um tempo de reclusão. O mesmo ocorre em muitas nações indígenas, quando o jovem, para ser considerado adulto, é recolhido a uma cabana isolada, onde o xamã o submete a provas e o introduz em conhecimentos específicos.
Mas é preciso voar até a montanha. De cima, vê-se melhor. Talvez por isso Deus, ao criar o ser humano, tenha colocado a cabeça acima do coração. Ver com as emoções é correr o risco de desfigurar os desenhos. Os contornos mostram-se muito mais nítidos quando observados com serenidade.
E saber esperar. Primeiro, ousar perder o que envelheceu: o bico, as unhas, as penas. Despojar-se do que atravanca os nossos passos. Segundo, aguardar pacientemente o tempo da maturação. Enfim, dar o salto pascal, abrir as asas para a vida e, sem medo, empreender o voo rumo a novos horizontes.
Frei Betto

Educar para a felicidade


O que as pessoas mais buscam na vida? O velho Aristóteles foi o primeiro a dar a resposta: a felicidade, mesmo ao praticarem o mal.
A busca da felicidade nasce do desejo, e o desejo deveria estar canalizado para o Absoluto. Mas a cultura consumista que respiramos nos induz a canalizá-lo para o absurdo, e não para o Absoluto. Impinge-nos a falsa ideia de que a felicidade resulta da soma de prazeres – se tomar esta bebida, vestir esta roupa, usar este perfume, possuir este carro, fizer esta viagem, seremos felizes como atores e atrizes da peça publicitária, que exalam exuberante felicidade...
Graças a Deus o mercado não consegue oferecer um produto chamado felicidade. E é impossível saciar o desejo estimulado pela publicidade, e ainda que pudéssemos comprar todas aquelas ofertas, não seríamos necessariamente felizes. Isso gera enorme buraco no coração. E onde parcela da juventude tenta preencher esse buraco? Na droga.
A droga é a consequência óbvia de uma sociedade que mercantilizou a felicidade, e incute nas pessoas a falsa ideia de que ela reside na posse de bens materiais e em situações que exaltam a individualidade, como fama, beleza, poder e riqueza. Quem não alcançar tais ícones, será o mais infeliz ou desgraçado dos mortais.
A felicidade é um estado de espírito. Não costumamos ser educados para alcançar esse estado de espírito, e sim para ser consumistas. São dois seres antagônicos, conflitantes.
Onde, então, encontrar a felicidade? Nos aditivos químicos? Dão, momentaneamente, bem-estar de consciência. Embora não seja durável, é melhor do que se deparar no espelho com esse ser execrável, incapaz de ser feliz, de estabelecer relações com pessoas, natureza, Deus e consigo mesmo.
Ora, a escola tem que colocar, como finalidade, formar pessoas felizes, e não mão de obra qualificada para o mercado de trabalho. Cabe à escola interagir com o contexto em que vivemos.
Uma grande empresa multinacional, de auditoria financeira, abriu em São Paulo 20 vagas para economistas com menos de 35 anos de idade. Apareceram 200 candidatos. Houve uma primeira seleção; sobraram 100.
Ao entrar na sala, às 8h da manhã, o instrutor disse: “Bem-vindos vocês que passaram na primeira seleção, vamos agora à segunda. Antes de iniciarmos os testes, por favor, fiquem de pé todos aqueles que, neste domingo de manhã, não viram, ouviram ou leram noticiário no rádio, na TV, nos jornais ou na internet”.
Mais da metade ficou de pé. “Muito obrigado. Os senhores e as senhoras podem ir embora”, disse o instrutor.
“Mas por quê?”, reagiram alguns.
“Não interessam à nossa empresa profissionais indiferentes ao que ocorre no Brasil e no mundo, desconectados da realidade”.
O papel da educação é conectar educandos e educadores com a realidade, e imprimir às suas vidas o sentido de transformá-las para criar as bases da civilização do amor e da justiça.
Por: Frei Betto

23 de junho de 2015

Você conhece a origem das festas juninas?



          

          Fogueira, bebidas quentes, comidas deliciosas, música, dança e muita animação. Difícil quem não goste de uma boa festa junina. A diversão rola solta e, normalmente, não tem hora para acabar! Muita gente espera ansiosa pelo começo de junho que é quando essas comemorações realmente aparecem por todas as partes.
            Mas você acha que as festas juninas são originárias do Brasil? Aliás, indo mais a fundo, você sabe como elas surgiram? Você tem noção da história por trás dos itens que compõem essas grandes farras que muitos de nós gostamos de participar? Conheça alguns fatos possivelmente desconhecidos e entenda por que essa é uma das festas mais queridas.
              A história
            As festas juninas são mais antigas do que todo mundo pensa! Elas surgiram na Antiga Europa, há centenas de anos. As festas aconteciam durante o solstício de verão para comemorar o início da colheita — por isso tanta comida e bebida — e eram organizadas pelos celtas, egípcios e outros povos. Uma das deusas homenageadas era Juno, esposa de Júpiter, e as festas eram chamadas de “junônias”.
            O catolicismo passou a ganhar cada vez mais fiéis na Europa e a data coincidia com o nascimento de João Batista, primo de Jesus Cristo. A Igreja Católica cristianizou a data, instituindo homenagens aos três santos do mês. As comemorações passaram a se chamar de “joaninas” (por causa de João) e os primeiros países a comemorá-las foram Portugal, Itália, França e Espanha — e até hoje elas são muito importantes no Norte da Europa.
            Não se sabe se o nome “junina” é uma adaptação que veio com o tempo ou se mudou porque a festa é comemorada no mês de junho. Cada um dos países deu o seu toque à festa que conhecemos hoje em dia. Da França veio a dança, de Portugal e da Espanha veio a dança com fitas, entre outras culturas que foram se popularizando.
            A vinda para o Brasil
            Como é de se imaginar, a festa junina foi trazida para o Brasil pelos portugueses durante o período colonial. Por coincidência, os índios que habitavam o nosso país realizavam rituais nessa mesma época de junho para celebrar a agricultura e, com a vinda dos jesuítas, as festas se fundiram e os pratos passaram a utilizar alimentos nativos, como mandioca e milho.
            Tradicionais festas juninas brasileiras
            As festas juninas acontecem em todo canto do país, mas podem ser divididas em dois tipos distintos: aquelas que acontecem na Região Nordeste e aquelas do Brasil caipira (inspiradas nos Estados de São Paulo, região norte do Paraná, região sul de Minas Gerais e Goiás). Elas possuem diferenças e costumes bem diferentes.
            As mais tradicionais acontecem em Campina Grande (PB) e Caruaru (PE) e existe uma pequena rivalidade entre os dois Estados para ver qual delas é a melhor. Na Paraíba, a festa é conhecida como Forródromo que, como o nome sugere, é regada a muito forró. Entre as principais atrações está um desfile de jegues.
            Já Pernambuco tem a Vila do Forró, que é uma réplica de uma pequena cidade do sertão pernambucano. É possível fazer uma viagem até Recife pelo Trem do Forró onde cantadores regionais, sanfoneiros e artistas de todos os tipos transitam por entre os vagões, alegrando o público e ganhando um dinheirinho extra nessa época do ano.
            As festas do Brasil caipira são realizadas em quermesses com danças de quadrinha em torno da fogueira e, como não pode deixar de ser, com muita música caipira. Em todos os lugares, as mulheres usam vestidos coloridos de chita e os homens vestem camisa quadriculada e calças remendados com tecidos também cheios de cores.
            Os três Santos
            Santo Antônio, São João e São Pedro
            Santo Antônio é o primeiro dos santos a ser homenageado no mês. Sua festa é comemorada no dia 13 de junho e ele é conhecido como o santo casamenteiro, já que ajudava as moças do século XII a conseguir o dote para realizar o tão sonhado casamento. Diversas simpatias são realizadas por mulheres que querem um namorado, noivo ou marido.
            O dia de São João é o mais esperado de todos eles. A festa é realizada no dia 24 de junho e, nesse dia, existem muitas festas pelo Brasil, principalmente no Nordeste. João era filho de Isabel, prima de Maria (mãe de Jesus). Segundo a Igreja Católica, foi ele quem preparou a vinda de Cristo e batizou-o no rio Jordão.
            O último santo do mês é São Pedro. Ele era um dos pescadores discípulos de Jesus e também conhecido como o fundador da Igreja Católica. O catolicismo prega que é Pedro quem tem as chaves do céu. Sua festa é comemorada no final do mês de junho, no dia 29. Com ele, encerra-se as festividades desse mês tão celebrado.
            A fogueira
            A fogueira é um dos maiores símbolos das festas juninas
            Assim como a maioria dos elementos de uma festa junina, existem dois significados para a famosa fogueira. Nas festas pagãs e indígenas, elas eram feitas para espantar os maus espíritos. Já na tradição cristã, ela tem uma explicação: Isabel teria dito à Maria (mãe de Jesus) que acenderia uma fogueira para avisá-la do nascimento de seu filho (João). Maria viu as chamas de longe e foi visitar a criança que tinha acabado de nascer.
            Hoje, por questão de segurança, elas também só são feitas em poucas cidades do interior, já que também não são permitidas nas grandes quermesses para que se evite incêndios e acidentes causados pelas chamas. Mas o símbolo está sempre presente quando pensamos nas festas juninas.
            Delícias Juninas

            Difícil não ficar com fome em uma festa junina. Milho cozido (ou assado), pipoca, bolo de fubá cremoso (ou de milho), maçã do amor, pé-de-moleque, vinho quente, quentão, arroz-doce, canjica, chá de amendoim e muitas outras delícias (normalmente quentinhas, porque essa época do ano é bem fria) são a alma da festa.
            Reparou que muitas comidas são derivadas do milho verde? Isso se deve ao fato de que junho é a época propícia para a colheita do alimento e essa tradição está presente nas festas juninas desde que ela chegou ao Brasil. Outros grãos — como o amendoim — e raízes — como a mandioca — também marcam presença nas comemorações de junho.

Por Tatiana do Amaral Ribeiro

16 de junho de 2015

Como Jesus ressuscitou ao terceiro dia se ele morreu na sexta-feira à tarde e ressuscitou domingo de manhã?


Estou bem confuso com uma questão bíblica. Estava estudando mais a fundo a morte e ressurreição de Cristo e me deparei com uma dúvida que não consegui resolver até agora. Como Cristo pode ter ressuscitado ao terceiro dia se ele morreu na sexta-feira, no final da tarde, e ressuscitou no domingo pela manhã?


Caro leitor, essa é uma questão bem interessante. Vamos analisar juntos os fatos para encontrarmos a resposta que você deseja, fazendo uma pequena cronologia da morte e ressurreição de Cristo.
(1) Jesus foi preso e levado perante Pôncio Pilatos antes da comemoração da páscoa judaica; antes do meio dia da sexta-feira foi o horário em que Jesus foi condenado e iniciou a sua caminhada até o Calvário (João 19:14). Em Lucas 23:44-46 e em Marcos 15:33-34 vemos registrado que a morte de Jesus se deu por volta da hora nona, ou seja, por volta de três horas da tarde. Vemos também que os judeus que acompanhavam a crucificação não queriam que os corpos (de Jesus e dos ladrões crucificados ao lado dele) ficassem ali na cruz por muito tempo para não atrapalhar a festa da páscoa a ser realizada no outro dia, no sábado, solicitando as autoridades que fossem tirados dali (João 19:31).
(2) Em João 20.1 vemos Maria Madalena indo até o sepulcro no primeiro dia da semana, domingo, e Jesus não estava lá, havia ressuscitado. Sendo assim, fica claro na Bíblia que Jesus morreu por volta das três da tarde da sexta-feira e ressuscitou em algum horário na manhã do domingo.
(3) Podemos constatar que Jesus antes de sua morte já havia revelado aos seus discípulos que ressuscitaria no terceiro dia: “Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia” (Mateus 16:21). Em todos os quatro evangelhos vemos registrado a fala de que Jesus ressuscitaria ao terceiro dia (Mateus 20:19; Marcos 10:34; João 2:19).
(4) A explicação para essa aparente contradição é que Jesus ressuscitou “ao terceiro dia” e não “três dias depois de sua morte”, o que implicaria que ele ficasse morto por 72 horas. Era muito comum aos judeus considerar partes de um dia figuradamente como um dia completo. Por exemplo, no livro de Ester 4:3, vemos registrado que foi levantado um jejum por “três dias e três noites”, ao fim do qual Ester se apresentaria perante o Rei para suplicar pelos judeus. Porém, vemos ali que eles começaram o Jejum já com o dia em andamento e que Ester foi à presença do rei “ao terceiro dia” (Ester 5:1), logo, esse período de Jejum não foi de 72 horas completas. Da mesma forma as palavras de Jesus de que ressuscitaria ao terceiro dia seguiram esse mesmo esquema.
(5) Então, para entendermos bem, ficou dessa forma: Jesus morreu na sexta-feira (primeiro dia), passou-se o sábado (segundo dia), chegou o domingo (terceiro dia). Daí, então, os escritos dizerem que Jesus ressuscitou “ao terceiro dia” e não “três dias depois de sua morte”. Dessa forma, não encontramos contradições na Bíblia com referência a esse fato.

 Matéria de  André Sanchez